Goularti Filho, Alcides. Caminhos, estradas e rodovias em Santa
Catarina. Hucitec, 2022. 230 pp.
Percorrendo as modernas e velozes
rodovias de Santa Catarina, no sul do Brasil, um viajante desavisado mal pode
imaginar o movimento secular de suas construções. Pelo litoral ou pelo
planalto, os enormes objetos técnicos, ou melhor, camadas geoeconômicas, como
define Goularti Filho, completamente integrados à imensidão da malha viária
brasileira, atravessam, de Norte a Sul e de Leste a Oeste, as irregularidades
do terreno cuja geomorfologia implicou a formação de belas, complexas e
interessantes vias de comunicação. O território do Estado de Santa Catarina
possui relevo, vegetação e hidrografia peculiares que passaram às suas atuais
rodovias suas especificidades.
A velocidade que agora caracteriza as rodovias
catarinenses nem sempre foi assim. Ou talvez tivesse sido. Depende do ponto de
vista do observador. Isso é algo que nos questionamos a partir da leitura
desta obra. Pois, mesmo para explicar o passado mais remoto, o autor consegue
desapegar-se das ideias de atraso e lentidão para expor que a percepção da
velocidade dos fluxos deve ser a da velocidade possível em cada época, afastando-se,
em Caminhos, estradas e rodovias em Santa Catarina, da hipostasia em que
a visão de atraso no presente é transposta a qualquer tempo passado.
Trata-se do fruto de uma pesquisa de mais de uma década, cujo
levantamento de fontes “primárias”, com destaque para fontes oficiais, denota
um grande esforço de investigação. Há também um conjunto de ilustrações,
incluindo a capa do livro e mapas, cuidadosamente elaborados, que enriquecem
o texto, permitindo uma fácil visualização dessas estruturas que serpenteiam o
território catarinense.
Profundo conhecedor da economia brasileira, mas sobretudo catarinense,
autor de Formação Econômica de Santa Catarina (2016) e de Portos, Ferrovias
e Navegação em Santa Catarina (2013), Goularti Filho, pela observação –pois
percorreu todas as estradas tratadas em seu novo livro– nessa pequena odisseia,
consegue capturar a dimensão do processo histórico qualificando a análise das
fontes de pesquisa. Análise que se pauta na crítica acurada de relatórios
técnicos e discursos, sobretudo, não escapando as entrelinhas do farto
material.
Assim, as principais rodovias do Estado de Santa Catarina são postas em
perspectiva histórica, para que seu longo e contínuo processo de construção e
manutenção, a “tarefa de Sísifo”,
como se refere o autor, seja compreendido conforme o passo da economia regional.
Mas não o faz acriticamente, há a compreensão de que a colonização e a abertura
de caminhos e construção de estradas recorrentemente usavam violência, sendo
causa de extermínios de comunidades indígenas.
A mais recente obra do pesquisador traz, em seus dez primeiros
capítulos, a história das principais estradas em Santa Catarina. A primeira a
ser tratada é uma das mais antigas, a Estrada de Lages. A cidade de Lages teve
sua fundação explicada pela abertura do histórico caminho de tropeiros de
Viamão a Sorocaba, ainda na primeira metade do século xviii. Para Goularti Filho, essa estrada representa o “fio
condutor do território catarinense”. Entender sua formação é entender, de
certa forma, a definição do próprio território, pois a cidade de Lages, do
passado ao presente, é um importante nó da rede urbana desse estado sulino,
sendo objeto de recorrentes esforços de integração entre a capital e o
planalto. Já no século xx, essa
estrada dará contornos, com o rodoviarismo, à sinuosa BR-282, conduzindo a
integração territorial de Leste a Oeste.
Parte do Caminho de Viamão a Sorocaba, eixo das trocas entre os
produtores de gado no Sul do Brasil com o mercado do Sudeste, especificamente o
trecho entre Santa Cecília (sc)
e Campo do Tenente (pr), ficou
conhecido como Estrada da Mata, após uma série de obras e melhoramentos, desde
1829, que, por fim, venceram o difícil terreno e a densa floresta que insistia
em recobrir o velho caminho marcado às pegadas das tropas. A demanda do
complexo cafeeiro, todavia, impunha outro ritmo, o da ferrovia. Assim, na
segunda metade do século xix, a
Estrada da Mata foi rebaixada na hierarquia dos transportes, a carga das
mulas, substituída pela rapidez locomotivas e seus vagões e todo um arranjo de
produção e circulação, modificado. A partir do declínio do tropeirismo, o
interesse maior pela manutenção da velha estrada era do governo paranaense,
que pretendia expandir áreas de colonização pela região que era contestada.
Com a resolução da chamada Questão dos Limites, o Poder Público de Santa
Catarina passaria a ter maior presença no planalto norte. A BR-116, hoje,
guarda traços que remetem a essa história, mas retilinizando e modernizando o
velho caminho.
Lages figura, ainda, como ponto de chegada/partida da estrada que
alcançava Laguna, no litoral sul do estado. Nesse terceiro capítulo, Goularti
Filho, dá destaque à dificuldade de superar o relevo íngreme da serra geral,
uma verdadeira muralha natural. A seção trata não de uma estrada, mas de pelo
menos duas: a Estrada do Tubarão e a Estrada do Imaruí. Hoje em dia, difícil é
não se encantar com a paisagem monumental que se apresenta aos viajantes
desses caminhos. Aqueles que se deslocam pelas curvas fechadas da Serra do Rio
do Rastro, pela SC-390, deparam-se com uma subida que vai do nível do mar a
mais de 1200 metros de altitude. Um “paredão” que dá ao litoral sul um súbito
anoitecer e que foi transposto, mesmo com dificuldade, por tropas e tropeiros
já no século xviii. Nessas
estradas, que selaram o destino da região, que serviram à criação de núcleos
coloniais e à interligação do litoral sul ao planalto serrano, a lentidão do
“horroroso caminho” também não impediu a circulação e os fluxos.
O capítulo seguinte aborda a construção do que é hoje uma das rodovias
mais familiares para viajantes portenhos, uruguaios e gaúchos que buscam os
destinos turísticos do litoral catarinense, desde a divisa com o Rio Grande do
Sul até Florianópolis, a BR-101. Entre morros e lagoas, o trajeto de hoje é
bastante diferente daquele relatado por viajantes naturalistas outrora sobre a
Estrada do Litoral. As velozes retas do presente apenas cortam em alguns pontos
as picadas abertas por aventureiros do século xvii
e os caminhos feitos por práticos no século xviii.
A construção secular foi responsável pela transposição das barreiras naturais,
como rios caudalosos e morros “escabrosos”. A importante artéria que é hoje a
BR-101 Sul também não era a realidade da Estrada do Litoral no passado. A
Estrada de Ferro Donna Tereza Cristina, de 1884, teve maior relevância para a
fixação de colonos em núcleos mais afastados da linha litorânea, como Criciúma.
Pela ferrovia também era escoada a principal produção da região, o carvão
mineral.
Além de estradas coloniais que interligavam os novos assentamentos de
imigrantes, a Estrada do Litoral rivalizava com a navegação fluvial e com as
obras de canalização entre as diversas lagoas ao sul de Laguna, sem falar da
navegação de cabotagem, ainda mais importante. A condição tomará novo
contorno, já no século xx, a
partir da formulação de planos rodoviários, especialmente após 1956, quando o
Governo Federal assumiu a responsabilidade pelas obras de abertura e
pavimentação, dando, em 1964, a atual nomenclatura da rodovia. A nova
condição dos transportes correspondia, novamente, a um novo padrão de
crescimento da economia.
A “moderna engenharia” é caracterizada em uma das estradas construídas
pelo governo imperial, na segunda metade do século xix, para atender aos complexos agrários exportadores
regionais do país. Assim a Estrada Dona Francisca, que ligava o planalto norte
a Joinville, deve ser entendida como elo do complexo ervateiro catarinense,
tema que também foi objeto de pesquisas de Goularti Filho, ainda que,
curiosamente, não seja referenciado no texto em tela. Sua construção envolveu
uma grande obra, com emprego de milhares de trabalhadores e das melhores
técnicas de engenharia, sendo uma das poucas macadamizadas na época. Com início
em 1858, quando ainda restavam mais de três décadas de construção, a Estrada
Dona Francisca, já desde os anos 1870, prestava-se ao intenso fluxo de carroças
com erva-mate e inúmeros artigos da pequena produção mercantil local no trajeto
pela Serra do Mar. Com isso, favoreceu, em combinação a outros modais de
transporte, um importante processo de colonização, expansão demográfica e o
desenvolvimento de uma das principais regiões industriais do estado. Ainda
após sua passagem à responsabilidade do Governo Estadual, manteve-se sua
importância nos gastos públicos. Isso arrefeceu com a chegada dos ramais da
Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (efsprg).
Muitas das curvas da outrora moderna estrada ainda estão presentes nas atuais
rodovias BR-280 e SC-418.
A sexta estrada da série, a Estrada de Três Barras, assim como as demais
em cada região, tem forte correlação com o povoamento no Norte do Estado e com
o favorecimento das trocas mercantis entre os núcleos urbanos que ficavam
entre o litoral norte de Santa Catarina e o dinâmico Planalto Curitibano. O
autor busca a origem dessa rota no aproveitamento de ramais dos Caminhos de
Peabiru, rotas feitas por indígenas do litoral brasileiro para alcançar outras
civilizações pré-colombianas no continente, chegando até Cuzco. Com a fundação
de São Francisco do Sul e sua consolidação como porto, na segunda metade do
século xvii, e com o decorrente
interesse curitibano na interligação, a Estrada de Três Barras e a sua
continuação no Caminho dos Ambrósios passaram a receber atenção com obras e
manutenção recorrentes, já desde a época em que eram controladas pela província
de São Paulo (antes de 1853). Havia um interesse mútuo da interligação, fosse
da província de Santa Catarina –cuja jurisdição alcançava a Estrada Três
Barras, desde o litoral, transpondo a Serra do Mar– fosse da província de São
Paulo e, mais tarde, Paraná, alcançando os Campos dos Ambrósios. Na segunda
metade do século xix, com o
deslocamento do dinamismo regional de São Francisco para Joinville, de onde
irradiava-se um processo de formação de novas colônias, tomava-se a opção pela
Estrada Dona Francisca, que passou, então, a ser o principal eixo que conectava
Joinville e também São Francisco ao planalto norte e, daí, a Curitiba. Assim, substituída,
a Estrada Três Barras, diferentemente das demais, não originou uma rodovia no
século xx.
O mesmo não ocorreu com outra estrada que também teve a função de servir
como eixo de comunicação Leste-Oeste, conectando o modo de vida do litoral, passando
por áreas de colonização de origem europeia, e o modo de vida caboclo do
planalto serrano. A Estrada de Blumenau a Curitibanos, que também se combinava
com modal fluvial, permitiu o fluxo de colonos e tropeiros de pessoas e
mercadorias da região litorânea, pautada na pequena propriedade e na produção
diversificada, e de pessoas e mercadorias do planalto, onde o latifúndio, a
produção de gado e a agricultura de subsistência eram presentes. Com a fundação
das colônias de Blumenau e Brusque, mas, sobretudo, a partir 1875, com o impulso
gerado pelo incentivo do governo imperial para colonização por imigrantes
europeus, foi favorecido o processo de integração regional. Com isso, a estrada
avançava e, após estatizada, finalmente alcançava o alto da serra, aproximando
dois mundos. Essa integração de duas formações socioespaciais diferentes ainda
é possível ser observada na atual BR-470.
Seguindo a marcha para o Oeste, a Estrada de Campos Novos é considerada
crucial no processo de definição do território catarinense. Isso é verdadeiro,
especialmente, no que se refere aos objetivos de alcançar os chamados Campos de
Palmas, região que esteve em disputa entre Paraná e Santa Catarina, durante boa
parte do século xix até início do
século xx. O que hoje é o Oeste
de Santa Catarina também era objeto de litígio entre Argentina e Brasil, dados
desentendimentos sobre tratados internacionais, que se arrastaram até 1895.
Mesmo contribuindo para a produção da erva-mate e do gado, para Goularti Filho,
a história da Estrada de Campos Novos serve como forte evidência, como as
demais, para a compreensão do processo de “adensamento do Estado no território”, uma das categorias centrais
de sua análise. Nesse capítulo 8, o autor trabalha a história de pelo menos
três caminhos, cujos esforços envidados tiveram razões políticas, tanto que
foi feita a opção da Estrada de Campos Novos pelo Poder Público Estadual na
definição das prioridades de gastos, diante de definições que davam ganho de
Palmas ao Paraná. A combinação das estradas, no início do século xx, com e efsprg e o próprio processo de chegada da ferrovia, da
apropriação dos espaços naturais e do conflito com as populações locais,
culminando na Guerra do Contestado, também são abordados no livro de forma
sintética. Campos Novos passa a caracterizar-se como um posto avançado da
estratégia de ocupação no Meio-Oeste e rumo à região de fronteira, na direção
da BR-282.
Ainda no Oeste, para tratar da Estrada de Palmas às Missões, o professor
Alcides retoma o tema da disputa territorial com grande capacidade de síntese,
explicando a sucessão de tratados, do século xix,
entre as coroas portuguesa e espanhola na definição de suas fronteiras nessa
parte meridional do continente. Após a vinda da Família Real ao Brasil, iniciam
expedições a fim de estabelecer um caminho que ligasse, pelo Oeste, às
províncias de São Paulo e São Pedro do Rio Grande. Com o avanço das incursões,
surgiram povoados em Guarapuava e depois Palmas, ainda na primeira metade do século
xix. A partir de Palmas, o
governo da província de São Paulo, às custas de inúmeras vidas de indígenas,
iniciou a abertura da estrada até as Missões. Para os gaúchos, também havia
interesse em abrir comunicação com outras áreas de sertão, possível por essa
via de comunicação. Seguiram-se alguns projetos sobre o traçado da estrada,
que, por fim, serviu ao surgimento de cidades catarinenses como Xanxerê e
Chapecó, entre outras, sendo um bom exemplo da correlação entre estrada,
território e poder. Desses caminhos resultaram estradas pavimentadas que fazem
a ligação entre alguns municípios e alguns trechos de rodovias (BR-480, BR-282,
SC-155 e BR-280).
De volta ao litoral, o último capítulo, que aborda especificamente uma
estrada, versa sobre o eixo dinâmico que se localiza entre Florianópolis e
Joinville. O argumento que ganha contorno no texto evidencia a transferência do
mais valor da estrada (ou rodovia) às áreas adjacentes e a toda uma região
circundante, ou seja, a transformação de “espaços naturais em espaços
de valorização, a unidade
indissolúvel entre produção e circulação”. Esse percurso, até meados do
século xx, era, na verdade, a
soma de trajetos menores, ou estradas coloniais, como de Joinville-Jaraguá,
Jaraguá-Blumenau, Blumenau-Itajaí e daí até a Capital. Só a partir da década de
1940, com planos rodoviários federais, com a ligação de Curitiba a Porto
Alegre, passando por Florianópolis, é que se obteve o trajeto da atual BR-101.
Por isso, o livro traz uma periodização que chama essa interligação de Estrada
do Litoral da Terra Firme para o período entre o século xviii e o último quartel do século xix, Estrada do Itajaí para o período que segue até a década
de 1930 e Estrada Federal de Florianópolis a Joinville após isso.
Mais relevante que os resultados da pesquisa em si, em cada bem
desenhado capítulo, são as categorias inovadoras que são utilizadas para
explicar, mas que, ao mesmo tempo, emanam do objeto de análise. A totalidade
concreta que serve a apreensão e, daí, a compreensão da realidade histórica.
Não à toa, o livro está encharcado de materialismo histórico, mas não só. Além
de uma interpretação de Marx, que já estava presente na grande produção
bibliográfica do autor, sua formação eclética fica evidente. Ora, na economia,
na história e na geografia, deve ser entendida sua formação teórica. Gigantum
humeris insidentes, sobre Keynes, Kaleck, Schumpeter, List, Braudel,
Poulantzas, Luxemburgo, mas também Milton Santos, Caio Prado Júnior, Furtado e
Cano, para ser brevíssimo, Goularti Filho constrói seu ferramental analítico.
Porém, as categorias que Goularti Filho desenvolve, em que pese suas
influências intelectuais, são idiossincrásicas, derivam de suas próprias
elaborações. Isso fica bastante claro já na introdução ao texto. Estradas são
vistas, na abstração, como parte das “camadas
geoeconômicas” que se sobrepõem e definem o território, em um
processo de “adensamento do Estado e
do capital no território”. Com isso, as estradas, combinadas a outros
objetos dos sistemas de transporte, comunicações e abastecimento, não são um
objeto passivo, mas são ativas na formação de um “sistema regional de economia”, conceito derivado de List.
Trata-se de categorias que têm fundamento histórico, geográfico, econômico e político-social.
É algo novo que serve para compreensão de uma rica totalidade.
Além de ser a primeira pesquisa que aborda as estradas no estado de
Santa Catarina de forma tão extensa, o estilo de escrita de Alcides Goularti
Filho e o uso de categorias de elaboração própria tornam a obra uma
interpretação original. É um livro sobre estradas, o fio condutor do argumento,
mas é também uma contribuição para estudos sobre a circulação no modo de
produção capitalista. A obra Caminhos, estradas e rodovias em Santa Catarina
tem grande valor para a academia e para a história econômica e social do sul do
Brasil.
Referencias
Goularti Filho, A. (2016). Formação
econômica de Santa Catarina. Editora da Universidade Federal de Santa
Catarina.
Goularti Filho, A. (2013). Portos, ferrovias
e navegação em Santa Catarina. Editora da Universidade Federal de Santa
Catarina.
Fábio Farias de Moraes
fariasdemoraes@gmail.com
Universidad de San Pablo