Revista Interdisciplinaria de Estudios Agrarios Nº 57 2do. semestre de 2022
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Reseña Bibliográfica
Globalização, segurança alimentar, feminismo e agroecologia.
Josefa Salete Barbosa Cavalcanti, Andrea Butto, Ludovic Aubin (organizadores).
Brasília: CNPq - São Paulo: Annablume, 2022, 460 páginas.
Este livro organizado por Cavalcanti, Butto e Aubin chega na hora certa,
num momento em que a (in)segurança alimentar no Brasil está na ordem do dia,
como tem noticiado a imprensa
1
.
Com efeito, ao destacar o protagonismo das mulheres campesinas na sua re-
lação com a agroecologia e com a segurança alimentar, esta obra, baseada em pes-
quisas empíricas, traz elementos importantes para uma reflexão teórica e, sobre-
maneira, para uma ação política, num contexto fortemente marcado pela falência
dos modelos tradicionais de produção, especialmente em torno do combate à fome.
O livro de 460 ginas reúne 34 autores, distribuídos em 17 capítulos, conta
com uma introdução de autoria de Josefa Salete Barbosa Cavalcanti e Mónica Ben-
dini, no qual destacam, como o norte da reflexão, a circulação de mercadorias sob o
comando das corporações globais e suas implicações sobre as perversas formas de
exploração da terra e do trabalho e as desigualdades que marcam os diversos terri-
tórios estudados. As autoras sublinham que os resultados apresentados ao longo
do texto dão conta do protagonismo das mulheres na sua relação com a agroecolo-
gia, com a segurança alimentar e com democratização do uso dos bens comuns,
estimulando a inserção feminina em espaços públicos de participação, como ex-
pressão das diversas formas de resistência das mulheres.
No prefácio, Hélène Ghétat- Bernard destaca, como mérito do livro, a visibi-
lidade dada ao trabalho das mulheres para além de sua participação na produção
agrícola, o redimensionamento do lugar político da cozinha -enquanto espaço de
resistência, de criatividade e de conhecimento- e a agroecologia feminina enquanto
expressão de autonomia e de luta contra o modelo hegemônico.
O posfácio de Lúcia Marisy Ribeiro de Oliveira identifica, na denúncia das
formas de expropriação da terra pelo agrobusiness, ameaçando historicamente os
1
“A fome ronda 1 a cada 3 lares com crianças de até dez anos”. MENA, Fernanda, Folha de São Paulo,
14-set-2022. A matéria se pauta num levantamento realizado pela Rede Penssan (Rede Brasileira de
Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) e executado pelo Instituto Vox Populi.
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povos tradicionais, na força dos movimentos sociais no campo na defesa da refor-
ma agrária e dos agricultores familiares e na agroecologia como expressão da pre-
servação da biodiversidade, da diversidade produtiva e da autonomia alimentar,
os grandes pilares da obra.
Fruto de uma parceria acadêmica de longa data entre renomados pesquisa-
dores de vários países, especialmente do Brasil e da Argentina, mas também da
França, incorporando, mais recentemente, pesquisadores do Chile e da Colômbia, a
obra em apreço apresenta, de forma instigante e profunda, as particularidades dos
sistemas alimentares e dos processos sociais agrários nos diversos espaços lati-
noamericanos, num tempo movido pela globalização e pela ampliação do controle
das corporações transnacionais sobre as cadeias agroalimentares.
Os trabalhos de campo que dão tessitura à obra envolveram docentes, estu-
dantes de graduação e pós-graduação, agricultoras, lideranças dos movimentos
sociais de mulheres rurais, pesquisadores e técnicos de órgãos públicos, gestores
de cooperativas e os achados das pesquisas foram largamente discutidos em semi-
nários nacionais e internacionais, consubstanciando, ainda mais, as análises ali
presentes. Com efeito, está no foco das experiências concretas vivenciadas nos di-
versos territórios a sua força analítica maior.
Os temas aqui tratados guardem uma coerência interna, um desenrolar da
trama que não nos permite perder o fio da meada. Muito ao contrário. Os vários
olhares e a experiência trazida por cada autora, por cada autor, nos permitem apro-
fundar a compreensão em torno da crescente racionalidade ou da irracionalida-
de”, na sábia concepção de Milton Santos
2
, imposta à expansão dos negócios agrí-
colas de exportação.
Uma racionalidade instrumental implementada pela agricultura produtivis-
ta no âmbito da modernidade, que se demonstrou incapaz de alimentar o mundo e
de torná-lo econômica e socialmente sustentável, como atestam Aubin e Cavalcan-
ti. Para esses autores, a agroecologia, enquanto síntese de saberes antigos e con-
temporâneos, sinaliza para a possibilidade de superação de uma saturação global,
minimizando os impactos que se associam ao Antropoceno.
Também para Sánchez, a agroecologia se apresenta como um antídoto às
pressões sofridas pelos ecossistemas decorrentes do agronegócio, mediadas por
corporações transnacionais, especialmente no que diz respeito à concentração da
terra, à pouca oferta de alimentos básicos, ao empobrecimento do meio rural e à
deterioração do ambiente.
Em torno da relação entre mulheres e agroecologia, três aspectos particular-
mente interessantes são destacados por Butto et al., ao analisarem experiências do
Agreste Meridional e do Sertão de Pernambuco. Em primeiro lugar a tendência de
invisibilidade do trabalho das mulheres, que figuram como “coadjuvantes nas
atividades agrícolas”. Em segundo lugar, a conciliação entre atividades produtivas
e reprodutivas no âmbito do trabalho com a horta, evidenciando uma sobrecarga
2
Ver Milton Santos. A natureza do espaço. São Paulo, Edusp, 2014.
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de trabalho das mulheres. E, finalmente, a agroeocologia como um caminho capaz
de permitir visibilidade e reconhecimento ao trabalho das mulheres agricultoras,
por incorporar um projeto mais amplo de conservação da natureza e da agrobiodi-
versidade.
A commoditização dos bens comuns -dos solos, das águas, do ar, das flores-
tas, das sementes e até mesmo das comunidades- por meio da privatização e do
concomitante fechamento dos campos e expulsão das populações está na base das
reflexões trazidas por Aubin et al. Para esses autores, a pobreza rural é apresentada
como síntese da riqueza excessiva em poucas mãos e da miséria que se alastra. A
resistência encontra eco nos movimentos sociais, no enfrentamento e na denúncia
dos cartéis e oligopólios que privatizam os bens comuns e na agroecologia, que
anuncia a possibilidade de gestão compartilhada desses mesmos bens.
O caráter excludente do agronegócio frutícola do Vale do São Francisco foi
também analisado por Silva & Silva, ao discutirem o processo seletivo que acom-
panhou o acesso aos perímetros públicos de irrigação sob a gestão da Codevasf.
Um processo que beneficiou as áreas empresariais, mas que não conseguiu elimi-
nar a presença e a resistência da agricultura familiar, permitindo a coexistência e
até uma certa complementariedade, como admitem, entre práticas modernas e
práticas tradicionais na fruticultura de exportação.
Como discutido na literatura especializada, as dificuldades em atender aos
padrões dietéticos, fitossanitários e estéticos aumentam a competividade entre as
empresas, ao tempo em que exclui um grande contingente de famílias camponesas.
Essa questão é trazida por Medeiro, ao analisar a atividade dos produtores de quei-
jo na bacia leiteira de Pernambuco, nordeste do Brasil. As formas de resistência dos
produtores são identificadas como uma tentativa de valorização dos seus produtos
artesanais e de autonomia diante da subordinação imposta pelos sistemas agroali-
mentares.
Como demonstram alguns capítulos deste livro, o agronegócio da fruticultu-
ra vem sendo fortemente calcada na biotecnologia, na privatização de organismos
vivos, por meio das sementes geneticamente modificadas, via pagamento de royal-
ties, entre tantos outros processos de produção e de comercialização extremamente
sofisticados e caros. Tudo isso com o propósito de atender ao gosto de uma clien-
tela exigente, de alto poder aquisitivo, em nada comprometida com as injustiças
sociais econômicas que se ampliam nos diversos territórios da América Latina.
Nesse sentido, as análises em torno da fruticultura de exportação das regiões
do Vale do São Francisco, da Patagônia argentina e do Valle de Elqui/Limarí, no
Chile constituem, sem dúvida, um instigante campo de informação e de análise das
particularidades desse e de tantos outros processos trazidos ao debate pelas análi-
ses contidas nesse livro. No caso chileno, Becker discute a reconversão varietal de
uvas para exportação no âmbito de um processo de comoditização do conhecimen-
to e da privatização de plantas. Grandes inversões financeiras como garantia da
intensificação da produção por hectare e do pagamento de royalty, exclusão de
produtores pouco capitalizados e superexploração de trabalhadores migrantes
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estariam no centro desse processo.
A adoção de novas variedades de uvas desenvolvidas por empresas genéti-
cas estrangeiras é também destacada por Pires, ao analisar a inserção competitiva
do cooperativismo frutícola do Vale do o Francisco nos mercados globais de
frutas. A ampliação dos negócios da região, também favorecida pelo aumento da
demanda por produtos frescos no mundo inteiro durante a pandemia da Covid-19,
contrastou com os sacrifícios impostos aos trabalhadores, expostos aos riscos da
infecção, trazendo a cena a situação de vulnerabilidade dos trabalhadores, tidos
como “essenciais”. Não havia lugar para home office entre eles. A pandemia reve-
lou, sem disfarce, as profundas injustiças que cercam o sistema agroalimentar e que
vitimam, de forma desigual, os diversos atores envolvidos nesse processo. A Co-
vid-19 também foi situada como um fenômeno que agravou sensivelmente a
precária segurança alimentar e nutricional das populações mais vulneráveis, como
discutido por Souza, Cesse e Fontbonne.
Capitalismo e patriarcado são eleitos como categorias analíticas por Fran-
quelli para situar o conflito presente na relação entre sujeitos, territórios e comuni-
dades, que acompanha a expansão das atividades presentes em Añelo, na Pa-
tagônia argentina -desde a produção frutícola até a extração de hidrocarbonetos-
vitimando as famílias indígenas-camponesas. A autora sublinha que as mulheres
desempenham uma pluralidade de atividades, que se reveste de grande valor pela
preservação da vida e da terra, com particular destaque para o cuidado com o ou-
tro, dentro, de uma ótica do “bem viver” presente na filosofia do Povo Mapuche.
Protagonismo feminino e diversidade produtiva estão na base da discussão
de Leite et al. ao analisarem a relação entre a agricultura urbana e periurbana
(AUP), a partir dos circuitos curtos de comercialização (CCC) de duas experiências
de hortas comunitárias no município de Petrolina-PE. Os autores constatam a forte
presença feminina na condução das hortas comunitárias, na transmissão de conhe-
cimentos tradicionais, na inovação relacionada ao plantio e consumo e na grande
diversificação da produção.
A transmissão de saberes tradicionais também foi um dado observado por
Spinelli na região do Parque Nacional do Catimbau, no município de Buíque, esta-
do de Pernambuco. A autora identifica, no conhecimento nativo da população com
as diversas formas de utilização da flora, um dado importante na preservação do
território, “um efetivo patrimônio imaterial que se socializa oralmente”.
Os vários capítulos do livro discutem não apenas a relação entre gênero e
agroecologia, ao introduzirem a alimentação, o cuidado e a soberania alimentar no
centro do debate. E vão mais além, ao destacarem a dimensão política das hortas,
dos quintais, do espaço da cozinha e do ato de cozinhar dentro de uma ética femi-
nina do cuidado. Como observam Souza, Cesse e Fontbonne nesse sentido, a comi-
da e o comer, passam a ser concebidos como importantes categorias analíticas na
compreensão de questões relacionadas ao poder, dominação, desigualdade e fragi-
lização dos laços sociais, que permeiam as condições de vida de uma dada popu-
lação.
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Não sem razão, portanto, neste livro, a relação agricultura e alimentação
passa por outros crivos, ao destacar a dimensão política das hortas, dos quintais,
do espaço da cozinha e do ato de cozinhar. São questões que dão visibilidade à
criatividade, à resistência e ao papel central desempenhado pelas mulheres cam-
ponesas na segurança alimentar e na democratização do uso dos recursos hídricos
dos territórios rurais. Sánches, por exemplo, a partir de experiências agroecológicas
conduzidas por mulheres na Colômbia, salienta a importância feminina para a
segurança alimentar, inclusão social e sustentabilidade ecológica dentro de uma
ética feminina do cuidado. Situação semelhante é trazida por Andrade ao analisar,
na região da Patagônia argentina, o trabalho das mulheres agricultoras, no âmbito
dos sistemas de alimentação locais (SAL). Para essa autora, essas mulheres, com
base nos princípios da agroecologia, desempenham um papel essencial na dinami-
zação das hortas familiares, das feiras e dos coletivos sociais, contribuindo para o
aumento da soberania alimentar e para o fortalecimento dos laços sociais. Ainda
nessa na região da Patagônia, Bendini e Preda, apoiando-se na trajetória de uma
camponesa residente em Neuquén, destacam a importância das práticas sociais das
mulheres, sejam no âmbito da reprodução familiar ou da atividade produtiva ou
ainda da vida política-organizacional, para o desenvolvimento do meio rural den-
tro de uma dimensão sustentável e agroecológica.
As lutas políticas para garantir uma maior inserção representativa das
mulheres agricultoras no agreste meridional e no Sertão do Vale do São Francisco,
Estado de Pernambuco, também se sobressaem nas análises de Silva et.al. A agroe-
cologia é identificada pelos autores como a matriz articuladora das lutas. Outras
experiências que evocam o protagonismo das mulheres no âmbito da produção de
alimentos, da segurança alimentar e da participação em feiras agroecológicas o
trazidas por Andrade, Andrade e Moser. Tomando como referência o agreste per-
nambucano, os autores sublinham a importância da troca de alimentos, de semen-
tes e de mudas entre os participantes da feira agroecológica, favorecendo o empo-
deramento das mulheres e a ampliação de sua participação política.
Andrade analisa as especificidades dos processos migratórios em comuni-
dades do município de Surubim, no Agreste setentrional de Pernambuco, com a
chegada de micro e pequenas empresas dedicadas à confecção. A agricultura de
base familiar passa a coexistir com essas novas atividades, dentro de uma rede de
relações de reciprocidade. A emigração é situada como uma forma de manter a
unidade produtiva, e a produção agrícola, por sua vez, passa a ser um elemento
importante para a reprodução social e para a produção de confecção, dentro de um
contínuo rural-urbano.
Finalmente, as diversas análises aqui presentes mostram que a proposta des-
se livro está longe de se reduzir a simples denúncia dos impactos negativos da
globalização sobre a produção e circulação de mercadorias, bem como do caráter
predatório do agronegócio sobre o trabalho e sobre os territórios, o que, por si só,
diga-se de passagem, representaria um grande rito. Mas, como fora eviden-
ciado, os diversos pesquisadores não se furtam de anunciar, através dos seus rela-
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tos, que outras lógicas produtivas e de reprodução social mais includentes e mais
participativas existem. E que não apenas existem, mas resistem e, por resistirem se
revestem de poder para representar um antídoto ou um contra-modelo ao predató-
rio modelo hegemônico.
Maria Luiza Lins y Silva Pires
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Fecha de recepción: 16/06/2022
Fecha de aceptación: 27/09/2022